Furto de energia: é tributável o gato?

O questionamento bem que poderia ser uma piada, um chiste, mas é uma dúvida relevante para as distribuidoras de energia elétrica no país, afinal, o fisco brasileiro não se importa em tributar resultado que não existe.

 Lamentavelmente, no Brasil o furto é relativizado. Tolerou-se o furto de bens de pequenos valores, autorizando a leniência quando se verificar: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (STF. HC 844.120/SP, rel. min. CELSO DE MELLO, DJe 19/11/2004; STF. HC 98.152/MG, rel. min. CELSO DE MELLO, DJe 05.06.2009;  STF. HC 106.510/MG, Rel. p/ Acórdão min. CELSO DE MELLO, DJe 13.06.2011; e STF. RHC 113.381/RS, rel. min. CELSO DE MELLO, DJe 20.02.2014).

É curioso observar que a posição se altera quando o bem jurídico tutelado é o Erário. É o caso, por exemplo, de afastamento do princípio da insignificância no crime de descaminho (Recursos Especiais 2.083.701, 2.091.651 e 2.091.652) ou de apropriação indébita previdenciária (AgRg no REsp n. 1.832.011/MG).

 

O fato é que a tolerância com os “pequenos delitos” invariavelmente avança para outros delitos não tão inofensivos. A situação caótica que vive a população fluminense é emblemática. A leniência com pequenas contravenções, crimes de menor potencial ofensivo foi sedimentando todo um complexo social difícil de resolver. Tolerou-se o crescimento e consolidação das facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas e depois passou-se a igualmente aceitar a ocupação de comunidades inteiras por uma nova força do crime: as milícias. Resultado? Em parcela expressiva do Estado do Rio de Janeiro, o poder estatal não tem qualquer ingerência. Os números impressionam. Estima-se, em dados atualizados até 2021, que cerca de 4,4 milhões de habitantes estavam sob controle de algum grupo armado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o que representa aproximadamente 25% da população do Estado, de acordo com o trabalho “Mapa Histórico dos Grupos Armados do Rio de Janeiro”, publicado pelo Instituto Fogo Cruzado e pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF).

Esta pequena digressão é importante para entender o contexto do julgamento dos Processos 16682.720895/2020-62 e nº 16682.721089/2020-10 no âmbito do CARF que abordavam o tema central deste artigo: o furto de energia elétrica ou gato.

A distribuidora de energia elétrica do Rio de Janeiro informa que em algumas regiões, a proporção de gatos chega a 85%, 90% da energia distribuída, sendo remunerada a energia em menos de 10% dos casos. Para afastar a alegação de informação unilateral suscitada pela parte interessada, vale examinar os dados da agência reguladora. Segundo relatório da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as perdas totais de energia na distribuição (técnicas e não técnicas) representaram aproximadamente 14% do mercado consumidor brasileiro em 2021. A companhia Light relata, em um dos processos, que só no ano de 2017, registrou mais de 600 boletins de ocorrência.

O descontrole das autoridades públicas fluminenses obrigaram a companhia a investir de 2017 a 2021 mais de R$ 1,7 bilhão (valores históricos) no combate às perdas não técnicas. Neste cenário, cujas informações são de conhecimento público e tais esforços são publicitados pela companhia em suas demonstrações contábeis por se tratar de companhia aberta listada em bolsa, poder-se-ia reconhecer que como despesas dedutíveis tais perdas.

No entanto, lamentavelmente a Receita Federal não comunga do mesmo entendimento. Concessionárias de energia elétrica são autuadas por deduções supostamente indevidas.

Num caso julgado pelo CARF em 2020, o Conselho manteve a autuação de uma concessionário porque apesar de ter realizado o registro de ocorrência policial, na visão da fiscalização o registro era muito “vago e genérico” (processo nº 16682.721141/2018-13):

ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA (IRPJ)
Ano-calendário: 2013, 2014
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. PERDAS TÉCNICAS. PERDAS INERENTES AO PROCESSO DE TRANSPORTE. INCLUSÃO NO CUSTO DO SERVIÇO PRESTADO. PERDAS NÃO TÉCNICAS. DESPESA DEDUTÍVEL EM CASOS ESPECÍFICOS.
A energia elétrica correspondente às perdas não técnicas, assim entendidas as perdas de energia elétrica que não sejam intrínsecas às atividades desenvolvidas pelas distribuidoras de energia elétrica, decorrentes de eventos como furtos de energia e erros de medição, não poderá integrar o custo dos serviços prestados.
As perdas não técnicas somente poderão ser consideradas como despesa dedutível para fins de apuração do lucro tributável, se decorrentes de desfalque, apropriação indébita ou furto, ocasionados por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista, ou quando ajuizada queixa ou dirigida representação criminal à autoridade policial, que individualize a situação fática, e não como pretendido pelo contribuinte, em forma de ofício, de forma genérica e vaga.
MULTA ISOLADA. CONCOMITÂNCIA COM MULTA DE OFÍCIO INCIDENTE SOBRE O TRIBUTO APURADO COM BASE NO LUCRO REAL ANUAL. COMPATIBILIDADE.
Tratando-se de infrações distintas, é perfeitamente possível a exigência concomitante da multa de ofício isolada sobre estimativa obrigatória não recolhida ou recolhida a menor com a multa de ofício incidente sobre o tributo apurado, ao final do ano-calendário, com base no lucro real anual.
JUROS DE MORA. MULTA DE OFÍCIO.
Incidem juros moratórios, calculados à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, sobre o valor correspondente à multa de ofício. (Súmula CARF nº 108) (CARF, Acórdão n° 1402-004.517, Processo n° 16682.721141/2018-13, Rela. Julia Roberto Gouveia Sampaio, j. 10/03/2020).

Em outro precedente, o CARF manteve a autuação do contribuinte em relação ao IRPJ e CSLL, mas admitiu em relação ao PIS e Cofins:

ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA (IRPJ)
Ano-calendário: 2014, 2015
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. PERDAS TÉCNICAS. PERDAS INERENTES AO PROCESSO DE TRANSPORTE. INCLUSÃO NO CUSTO DO SERVIÇO PRESTADO. PERDAS NÃO TÉCNICAS. DESPESA DEDUTÍVEL EM CASOS ESPECÍFICOS.
A energia elétrica correspondente às perdas não técnicas, assim entendidas as perdas de energia elétrica que não sejam intrínsecas às atividades desenvolvidas pelas distribuidoras de energia elétrica, decorrentes de eventos como furtos de energia e erros de medição, não poderá integrar o custo dos serviços prestados.
As perdas não técnicas somente poderão ser consideradas como despesa dedutível para fins de apuração do lucro tributável, se decorrentes de desfalque, apropriação indébita ou furto, ocasionados por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista, ou quando ajuizada queixa ou dirigida representação criminal à autoridade policial.
MULTA ISOLADA. CONCOMITÂNCIA COM MULTA DE OFÍCIO INCIDENTE SOBRE O TRIBUTO APURADO COM BASE NO LUCRO REAL ANUAL. COMPATIBILIDADE.
Tratando-se de infrações distintas, é perfeitamente possível a exigência concomitante da multa de ofício isolada sobre estimativa obrigatória não recolhida ou recolhida a menor com a multa de ofício incidente sobre o tributo apurado, ao final do ano-calendário, com base no lucro real anual.ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O FINANCIAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL (COFINS)
Exercício: 2014, 2015
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. REGIME NÃO CUMULATIVO. PERDAS NÃO TÉCNICAS DE ENERGIA. ESTORNO DO CRÉDITO. SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT 60/2019. APLICAÇÃO.
Sobressaindo solução de consulta 60/2019, da qual o contribuinte integra as consulentes, somente a partir de 03 de agosto de 2016 deve prevalecer o entendimento de estornar os créditos de Cofins relativos às perdas de mercadorias/bens adquiridos para revenda e perdas não técnicas de energia elétrica, a autuação anterior em período anterior deve ser cancelada.ASSUNTO: CONTRIBUIÇÃO PARA O PIS/PASEP
Exercício: 2014, 2015
DISTRIBUIÇÃO DE ENERGIA ELÉTRICA. REGIME NÃO CUMULATIVO. PERDAS NÃO TÉCNICAS DE ENERGIA. ESTORNO DO CRÉDITO. SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT 60/2019. APLICAÇÃO.
Sobressaindo solução de consulta 60/2019, da qual o contribuinte integra as consulentes, somente a partir de 03 de agosto de 2016 deve prevalecer o entendimento de estornar os créditos de PIS relativos às perdas de mercadorias/bens adquiridos para revenda e perdas não técnicas de energia elétrica, a autuação anterior em período anterior deve ser cancelada. (CARF, Acórdão n 1402-004.314, Processo n° 15586.720168/2018-14, Rel. Marco Rogerio Borges, j. 10/12/2019).

No caso da Light, a fiscalização considerou que as chamadas “perdas não técnicas” deveriam ter sido adicionadas ao resultado para apuração do lucro real e cálculo do IRPJ e CSLL. Ocorre que a legislação tributária autoriza a dedução como se pode observar da Lei n° 4.506/64:

Art. 47. São operacionais as despesas não computadas nos custos, necessárias à atividade da emprêsa e a manutenção da respectiva fonte produtora.

        § 1º São necessárias as despesas pagas ou incorridas para a realização das transações ou operações exigidas pela atividade da emprêsa.

        § 2º As despesas operacionais admitidas são as usuais ou normais no tipo de transações, operações ou atividades da emprêsa.

        § 3º Sòmente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita, furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos têrmos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial.

Em nível de regulamentação, o Regulamento do Imposto de Renda (Decreto n° 9.518/2018) estabelece igual autorização:

Dos prejuízos por desfalque, apropriação indébita e furto

Art. 376. Somente serão dedutíveis como despesas os prejuízos por desfalque, apropriação indébita e furto, por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado nos termos da legislação trabalhista ou quando apresentada queixa perante a autoridade policial.

O contexto narrado acima deveria ser suficiente para evidenciar que há um volume massivo de furtos de energia elétrica cujas providências para fazer cessar deveriam ter sido implementadas desde a primeira das mais de 600 ocorrências policiais. Como não surpreende ninguém e também não deveria supreender a fiscalização tributária, pouco ou nenhum resultado foi obtido com os registros efetuados, de modo que as ligações clandestinas persistem. A concessionária é obrigada pela legislação e pelo contrato de concessão que rege a não interromper o fornecimento de energia, mormente porque as ligações clandestinas podem estar vinculadas a troncos que atendem consumidores adimplentes.

As recentes decisões do CARF servem como alento para as concessionárias de energia elétrica que podem vislumbrar um caminho para mitigar os prejuízos suportados com um fato social lamentável que é a incapacidade do Estado coibir e punir os delitos reiterados. Não se trata de benefício ou benesse. Reconhecer que as perdas decorrentes de ligações clandestinas não devem integrar o resultado e sim servir para reduzi-lo como despesa dedutível é medida de justiça, tendo em vista que a tributação deve observar a capacidade contributiva (art. 145, § 1° da Constituição). Se tais perdas resultam em prejuízo para o resultado da companhia, este reflexo deve repercutir na apuração de IRPJ e CSLL sob pena do Estado estar se locupletando da sua ineficiência.

 

 

 

 

 

 

 

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